O clássico noir Crepúsculo dos Deuses completa 70 anos!
- Allan Veríssimo
- 2 de set. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 15 de jun. de 2021
São cinco da manhã em Sunset Boulevard, Los Angeles, Califórnia. O silêncio da melancólica madrugada é interrompido pelas sirenes dos carros de polícias, ambulâncias e jornalistas. Ao chegarem numa luxuosa mansão, o espectador descobre o motivo: um assassinato ocorreu, e o cadáver da vítima está boiando na piscina – no primeiro dos muitos planos icônicos do filme, vemos o cadáver de baixo para cima. O narrador revela ser ninguém mais ninguém menos do que o próprio morto além do túmulo, e lamenta a ironia de ter finalmente conseguido a piscina que quis durante toda a sua vida, mas a um preço alto demais...
É dessa maneira tétrica que o consagrado cineasta Billy Wilder (Pacto de Sangue, Quanto Mais Quente Melhor, Se Meu Apartamento Falasse e muitas outras obras-primas) inicia “Crepúsculo dos Deuses”. Originalmente, o filme começaria deixando o tom bizarro da trama ainda mais escancarado na cena de abertura, onde um grupo de cadáveres num necrotério ganhariam vida e contariam uns aos outros sobre a maneira como morreram. Como a cena foi ridicularizada nas sessões com o público-teste, Wilder alterou a abertura, felizmente, para melhor.
Na trama desse filme noir produzido em 1950, Joe Gillis (William Holden, Rede de Intrigas) é um roteirista fracassado e endividado, no fundo do poço. Certo dia, ao fugir dos seus credores, Joe se esconde no que ele pensa ser uma mansão abandonada e acaba conhecendo pelo mais puro acaso uma antiga rainha do cinema mudo, Norma Desmond (Gloria Swanson, que na vida real também foi uma famosa atriz do cinema mudo, aumentando a metalinguagem do filme). Esquecida por Hollywood e pelos fãs após a chegada do cinema sonoro, Norma sonha com um triunfal retorno para a indústria, e contrata Joe para reescrever o roteiro de um épico sobre Salomé, que ela planeja protagonizar. O roteiro é um completo desastre, mas Joe aceita o trabalho mesmo assim porque o salário oferecido é ótimo e ele acredita que conseguirá manipular a atriz para conseguir mais dinheiro. Mas quando as semanas se passam e a atriz, ao invés de lhe pagar o salário prometido, começa a ser estranhamente generosa, convidando-o para morar em sua mansão e dando-lhe presentes caros, Joe e o espectador começam a questionar: quem está manipulando quem?
É com essa premissa que Billy Wilder realiza um dos filmes mais pessimistas e angustiantes da sua longa filmografia, uma crítica ácida e feroz à indústria de cinema de Hollywood, e como esse suposto sistema perfeito pode facilmente tornar uma pessoa em um astro e, com a mesma facilidade, destruí-la profissionalmente e moralmente. Pois enquanto Joe se tornou de um roteirista ingênuo e idealista em um homem cínico e pragmático (ao ser questionado sobre o talento que demonstrou no passado, ele responde que “Isso foi no ano passado. Nesse ano eu estou tentando apenas ganhar a vida”) que chega a ter a ousadia de flertar com a namorada do melhor amigo em plena noite de Ano Novo, Norma é uma pessoa que vive nas glórias do passado e na esperança patética e fútil de um retorno aos holofotes, já que é a única maneira dela não perder a pouca sanidade que lhe restou. E mesmo que o sexismo da indústria tenha obviamente influenciado na sua queda profissional (em determinado momento uma pessoa zomba da idade dela, se esquecendo que o seu chefe, Cecil DeMille, é ainda mais velho do que ela), também fica sugerido que o próprio ego enorme da atriz, incentivado por anos de admiradores, oportunistas e puxa-sacos ao seu redor, também tiveram um dedo nisso.
Assim sendo, não é surpreendente que “Crepúsculo dos Deuses” não seja um filme acessível para todos os públicos, já que não segue de maneira alguma a cartilha dos clichês de Hollywood (como esperado de qualquer obra de Billy Wilder). Além da dupla de protagonistas, temos também o mordomo Max, que esconde segredos do passado e vê toda essa série de acontecimentos se encaminharem para um desfecho inevitavelmente trágico, se recusando a intervir. E finalmente, temos a jovem secretária Betty, o único ser humano decente e, justamente por isso, a maior vítima da trama. Como em toda produção noir, esse é um filme povoado quase que inteiramente por seres humanos horríveis, sem chances de redenção, habitantes de um universo que não podem (ou pior, não querem) mudar, mas ainda assim complexos, escapando das caricaturas fáceis do gênero.
Com belíssimas performances do seu elenco e os aspectos técnicos perfeitos, com destaque para os figurinos de Edith Head, o design de produção que torna a mansão de Norma um lugar tão luxuoso quanto anacrônico, e a épica trilha sonora de Franz Waxman, “Crepúsculo dos Deuses” ainda assim encontra em seus diálogos o seu grande triunfo, desde o “Eu sou grande. Foram os filmes que ficaram pequenos” até “é para isso que inventaram a pipoca. Para as pessoas não ouvirem os diálogos”. E ainda assim, em meio a todo esse melodrama, Wilder consegue incluir momentos de humor sombrio que caem como uma luva sem soarem forçados, num feito que ele repetiria anos depois em outros clássicos como “Inferno Nº 17” e “Se Meu Apartamento Falasse”.
O humor sombrio chega a se transformar quase em sadismo na cena final, quando após Norma dizer a célebre frase “Muito bem, Sr. DeMille, eu estou pronta para o meu close up”, Wilder desliga a câmera e encerra o filme, privando a personagem do seu close up e até mesmo dessa última e insignificante vitória.
Pois a essa altura, tanto Wilder quanto o espectador já sabem que Norma está irremediavelmente fora de foco.
Chamada do filme: https://www.youtube.com/watch?v=N-eOqYaYFw0
Allan Veríssimo

Cinéfilo, formado em Cinema e Audiovisual pela São Judas, cursando Jornalismo na Universidade Santa Cecília.
É Diretor, produtor e roteirista, colaborador dos sites Ligado em Série, Cine Alerta e Gelo e Fogo, além de estar aqui com a gente toda quarta-feira abrilhantando nosso blog com seu talento.
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